As atenções para a questão energética têm ganhado peso desde o começo do ano quando foram anunciados os baixos níveis dos reservatórios de muitas hidrelétricas no Brasil.
Recentemente,
temores quanto à segurança do abastecimento energético para a Copa das
Confederações e na Copa do Mundo de 2014 pelo atraso em obras do setor
energético, levaram o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, a afirmar
nesta segunda-feira que “Não há risco de racionamento ou de falta de energia no
Brasil”.
Conforme o
relatório do Balanço Energético Nacional 2012, as hidrelétricas se destacam
neste cenário atual desempenhando um papel central no fornecimento da energia,
totalizando 74% da oferta interna de energia elétrica proveniente da força das
águas. Mesmo assim, apesar de sua importância, conflitos sociais e aspectos
ambientais sempre estiveram lado a lado das hidrelétricas.
Flávio César
Thadeo de Lima, biólogo e pesquisador colaborador da Unicamp, estuda há 20 anos
os peixes de água doce. Com base em sua experiência, ele aponta questões
sensíveis ligadas às hidrelétricas, históricas e atuais, sobre os peixes e a
biodiversidade, alertando para os rumos que o desenvolvimento está tomando.
Epoch Times: Qual a questão mais
importante a respeito das hidrelétricas em seu campo de estudo?
Flávio Lima: A questão mais importante
quando pensamos em conservação de peixes de água doce no Brasil é a questão das
hidrelétricas, porque elas estão sendo construídas em um ritmo extremamente
acelerado. Estão sendo feitos estudos de impactos ambientais para cada uma
delas, mas já sabemos que elas têm um impacto muito severo sobre as populações
de peixes nativos, e de fato esses estudos servem apenas para consolidar o
conhecimento sobre os peixes de um dado trecho de rio/bacia hidrográfica, antes
que as modificações irreversíveis ecossistêmicas causadas pelas hidrelétricas
aconteçam.
Epoch Times: Poderia ilustrar algumas
modificações irreversíveis que as hidrelétricas causaram?
Flávio Lima: Por exemplo, na bacia do
rio Paraná, o Rio Paraná e seus principais tributários, o Paranapanema, Tietê e
Grande, que já foram quase completamente represados: perdemos em consequência
boa parte das populações de peixes migradores, que eram os mais importantes
para a pesca, como o dourado, o pintado, o jaú e a piracanjuba. Algumas destas
espécies, como a piracanjuba, estão agora ameaçadas de extinção.
Havia uma grande
pesca concentrada nessas espécies, por exemplo, na bacia do rio Piracicaba. Até
a década de 1950/começo da década de 1960, esses peixes eram comuns nesse rio.
Nos últimos
20-30 anos, foi a pesca no Pantanal que declinou muito devido ao desmatamento,
uso intenso agrícola das cabeceiras do Pantanal, pesca excessiva e construção
de hidrelétricas. O Pantanal já não é mais a Meca da pesca como era considerado
há 15-20 anos .
Já na bacia do
rio Paraná o pior já aconteceu, os peixes nativos de maior interesse já
praticamente desapareceram. As espécies que agora predominam nas represas da
bacia do rio Paraná foram introduzidas justamente porque se adaptavam aos novos
ambientes, como o tucunaré, a pescada e a tilápia.
Epoch Times: Poderia explicar qual
processo faz os peixes desaparecerem?
Flávio Lima: Poucas espécies de peixes
nativos sobrevivem nos trechos de rio represados, já que um rio transformado em
reservatório já não funciona mais, na prática, como um rio.
Um rio
naturalmente invade as áreas de planícies inundáveis onde estão as lagoas
marginais, o que propicia um ambiente aquático não só para os peixes adultos,
mas para os peixes jovens que estão crescendo. Isso é o chamado “pulso de
inundação”, em que as planícies de inundação próximas aos grandes rios são
invadidas pelas águas no período de cheias. Hidrelétricas, uma vez em operação,
além de inundarem permanentemente trechos grandes de rios, regulam a vazão do
rio abaixo. As hidrelétricas com grandes reservatórios acumulam as águas dos
rios, que por isso deixam de ter sua flutuação natural de nível de águas, o
“pulso de inundação”.
Quando as
hidrelétricas liberam a água para produzir energia, o fazem de acordo com a
demanda energética, eliminando a sazonalidade natural do rio, que tende a
correr com um nível de águas aproximadamente uniforme ao longo do ano,
prejudicando muito as populações dos peixes migradores que dependem do “pulso
de inundação”.
Epoch Times: Que outras mudanças
ocorrem nos rios represados?
Flávio Lima: Grandes hidrelétricas
retêm o sedimento dos rios, que decantam e se acumulam no fundo dos
reservatórios por conta da diminuição da correnteza do rio. Isso interfere com
os processos biológicos e geomorfológicos rio abaixo, já que esses sedimentos
são necessários tanto para a constante reconstrução das planícies fluviais,
como por carregarem nutrientes orgânicos e inorgânicos necessários para a
cadeia alimentar. Com a perda de sedimentos, rios abaixo de grandes
reservatórios tendem a intensificar processos erosivos, como foi observado
muito recentemente no rio Madeira em Porto Velho , após a construção da hidrelétrica de
Santo Antônio.
Outro problema é
a produção de gases causadores do aquecimento global, principalmente o gás
metano, pela decomposição da floresta inundada, um problema particularmente
sério nas hidrelétricas construídas na bacia amazônica, como foi o caso das
hidrelétricas de Balbina e Tucuruí e será o caso também das hidrelétricas de
Belo Monte e aquelas a serem construídas na bacia do rio Tapajós.
Epoch Times: Como está o ritmo de
construção das hidrelétricas na Amazônia?
Flávio Lima: O ritmo de construção de
hidrelétricas na bacia amazônica está sendo rápido demais, a um ponto que os
biólogos, e especialmente os ictiólogos (especialistas em peixes) não estão
sendo capazes de dimensionar a magnitude dos impactos que estão e serão
causados por elas.
Hidrelétricas
estão sendo planejadas ou construídas em todos os trechos com corredeiras ou
cachoeiras da Amazônia brasileira. Todo um tipo de ambiente aquático irá
desaparecer, e com ele, toda a fauna de peixes especializados nesse tipo de
ambiente e os demais organismos (insetos, plantas, etc) que vivem nesse tipo de
ambiente. Muitas espécies de peixes vão desaparecer.
Epoch Times: Pode dar alguns exemplos
das hidrelétricas na Amazônia?
Flávio Lima: A grande hidrelétrica de
Tucuruí, fechada durante o regime militar, em 1984, é a maior hidrelétrica
inteiramente em território nacional, e inundou uma enorme área (quase 3.000 quilômetros
quadrados). Ela inundou grandes trechos de corredeiras do baixo rio Tocantins.
Algumas espécies de peixes de corredeiras que viviam nesse trecho foram
capturadas durante a construção da hidrelétrica, mas não mais após. Hoje são
consideradas ameaçadas de extinção, embora efetivamente saibamos muito pouco
sobre elas, além do fato de que seu habitat natural foi irreversivelmente modificado
pela construção da hidrelétrica.
Perdemos também
uma área de enorme beleza cênica natural, que poucos brasileiros, além dos
indígenas que habitaram o baixo rio Tocantins, chegaram a conhecer. E o
terrível é que o mesmo está sendo feito em todos os rios amazônicos com
corredeiras/cachoeiras.
No Rio Xingu –
Belo Monte – há uma espécie de cascudo, o cascudo-zebra (Hypancistrus zebra) –
muito bonito, branco com listras pretas, muito apreciado no comércio aquarista
internacional, especialmente na Alemanha, Japão e Estados Unidos. Esse peixe só
existe na grande volta do Xingu, um trecho de rio de 100 quilômetros ,
situado acima da cidade de Altamira. Ele é endêmico – ou seja, só existe nesse
trecho de rio, em mais nenhum lugar. A hidrelétrica de Belo Monte irá desviar a
maior parte da água que hoje corre através da Grande Volta, em um canal que
está sendo construído.
Isso acarretará,
em consequência, uma grande redução na vazão da Grande Volta do rio Xingu. Não
irá secar completamente, mas a quantidade de água que irá passar no trecho
corresponderá ao que hoje passa no período mais seco do ano. Isso certamente
acarretará um grande dano à fauna aquática desse trecho do rio. Existem áreas
indígenas nesse trecho, e como essas comunidades dependem da pesca para sua
sobrevivência, serão muito afetadas pela construção de Belo Monte.
Os engenheiros
dizem que a quantidade de rocha e pedra para fazer esse imenso canal é maior do
que para construir o canal do Panamá! É uma imensa interferência no rio Xingu.
Epoch Times: Como equilibrar a questão
da demanda energética e a conservação?
Flávio Lima: Sim, é claro, existe a
demanda energética – que está crescendo etc, mas temos que começar a pensar,
como cidadãos, se vale a pena esse tipo de desenvolvimento. A questão do desenvolvimento,
como é pensado e colocado em prática, é um modelo que não se sustenta. Os
recursos do nosso planeta são limitados, mas isso não é considerado pelos
planejadores, ou seja, políticos, economistas, engenheiros, etc. Para eles,
apenas o crescimento interessa. Não há perspectiva de mudança de paradigma
econômico. Então, é inevitável – as últimas grandes áreas ainda intocadas do
planeta terão de ser incorporadas de forma mais intensa na economia brasileira
e mundial. Isso se traduz de uma forma simples: hidrelétricas e mineração por
toda a Amazônia, e aliada, é claro, à derrubada da floresta para agricultura e
pecuária.
Há grandes
interesses na extração de recursos minerais em grande escala nas bacias dos
rios Tapajós e Xingu. Em parte, as hidrelétricas planejadas para esses rios
serão construídas para atender essa demanda energética prevista. Principalmente
a extração e o beneficiamento da bauxita. Cerca de 80% da energia produzida
pela hidrelétrica de Tucuruí é para atender o consumo de energia das indústrias
que beneficiam bauxita em
alumínio. Há projetos de extração de bauxita próximos à Belo
Monte, na região de Juruti, pela ALCOA (Aluminum Company of America), e que
certamente usarão a energia de Belo Monte em suas instalações. Embora seja o
discurso oficial que a maior parte da energia será para atender a demanda
energética do resto do Brasil.
Epoch Times: Existem alternativas às
hidrelétricas?
Flávio Lima: Há alternativas de
recapacitação de usinas hidrelétricas já instaladas, das redes de transmissão
(muita energia é perdida e a modernização da rede causaria uma diminuição
substancial nessas perdas), uma enorme capacidade de geração de energia
elétrica pela biomassa da cana de açúcar, além de investimentos em energias
alternativas não poluentes, como a energia solar. Mas isso não é considerado
pelos planejadores, que, ao invés disso, preferem construir enormes
hidrelétricas na bacia amazônica, com custo ambiental e social enormes.
Pessoalmente, eu
não acredito que exista outra solução senão a substituição de nosso paradigma
econômico, e, de fato, civilizatório. Se continuarmos com essa mentalidade de
usufruto dos bens naturais até seu esgotamento, só conseguiremos duas coisas:
um, a extinção de boa parte da biodiversidade do planeta. E, claro, a própria inviabilização
da civilização humana. Então, é hipocrisia falar de conservação da
biodiversidade se nos mantivermos nesse modelo. Mas isso, é claro, é uma
questão mundial, não apenas do Brasil. É que o Brasil poderia tentar ter alguma
liderança no processo de mudança de paradigma. Mas não há qualquer vontade de
nossos dirigentes, e, verdade seja dita, da grande maioria da nossa sociedade,
em trilhar esse novo caminho.
Epoch Times: Quais as perspectivas que
você vê com base neste cenário?
Flávio Lima: Continuaremos nesse
processo de engolir as áreas selvagens, sabe Deus até quando. Não sei o que
será da Amazônia. Há 40-50 anos atrás achávamos que era grande demais, que iria
levar muito tempo para ser modificada pela ação humana. Mas desde os anos 70, esse
processo se acelerou muito.
Será que devemos
trilhar esse caminho em troca do benefício econômico de curto prazo? É uma
pergunta que a humanidade deveria se fazer. Estamos queimando nosso capital
ambiental. As futuras gerações irão pagar um preço muito caro pela nossa inconseqüência.
É um caminho
equivocado. O Brasil se orgulha de ser o país mais ‘biodiverso’ do mundo, e
isso está até em nosso hino nacional (“nossas matas têm mais vida”) e no verde
de nossa bandeira. Esse avanço desenfreado sobre a Amazônia é um ataque a nossa
própria identidade como povo. Vamos nos orgulhar do quê, daqui a algumas
décadas? De termos sido o país que mais causou extinção de espécies no planeta?
É muito triste, mas parece que é esse o rumo que estamos tomando. Então tem de haver
uma tomada de consciência, por parte da sociedade, dessas questões. Entender
que a perda de biodiversidade é irreversível e pode ser o sintoma da
deterioração dos recursos naturais e da nossa própria capacidade de nos mantermos
como uma sociedade funcional. Antes que seja tarde.
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