quinta-feira, 2 de maio de 2013

HIDRELÉTRICAS PODEM CAUSAR MODIFICAÇÕES IRREVERSÍVEIS NO ECOSSISTEMA















As atenções para a questão energética têm ganhado peso desde o começo do ano quando foram anunciados os baixos níveis dos reservatórios de muitas hidrelétricas no Brasil.

Recentemente, temores quanto à segurança do abastecimento energético para a Copa das Confederações e na Copa do Mundo de 2014 pelo atraso em obras do setor energético, levaram o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, a afirmar nesta segunda-feira que “Não há risco de racionamento ou de falta de energia no Brasil”.

Conforme o relatório do Balanço Energético Nacional 2012, as hidrelétricas se destacam neste cenário atual desempenhando um papel central no fornecimento da energia, totalizando 74% da oferta interna de energia elétrica proveniente da força das águas. Mesmo assim, apesar de sua importância, conflitos sociais e aspectos ambientais sempre estiveram lado a lado das hidrelétricas.

Flávio César Thadeo de Lima, biólogo e pesquisador colaborador da Unicamp, estuda há 20 anos os peixes de água doce. Com base em sua experiência, ele aponta questões sensíveis ligadas às hidrelétricas, históricas e atuais, sobre os peixes e a biodiversidade, alertando para os rumos que o desenvolvimento está tomando.

Epoch Times: Qual a questão mais importante a respeito das hidrelétricas em seu campo de estudo?

Flávio Lima: A questão mais importante quando pensamos em conservação de peixes de água doce no Brasil é a questão das hidrelétricas, porque elas estão sendo construídas em um ritmo extremamente acelerado. Estão sendo feitos estudos de impactos ambientais para cada uma delas, mas já sabemos que elas têm um impacto muito severo sobre as populações de peixes nativos, e de fato esses estudos servem apenas para consolidar o conhecimento sobre os peixes de um dado trecho de rio/bacia hidrográfica, antes que as modificações irreversíveis ecossistêmicas causadas pelas hidrelétricas aconteçam.

Epoch Times: Poderia ilustrar algumas modificações irreversíveis que as hidrelétricas causaram?

Flávio Lima: Por exemplo, na bacia do rio Paraná, o Rio Paraná e seus principais tributários, o Paranapanema, Tietê e Grande, que já foram quase completamente represados: perdemos em consequência boa parte das populações de peixes migradores, que eram os mais importantes para a pesca, como o dourado, o pintado, o jaú e a piracanjuba. Algumas destas espécies, como a piracanjuba, estão agora ameaçadas de extinção.

Havia uma grande pesca concentrada nessas espécies, por exemplo, na bacia do rio Piracicaba. Até a década de 1950/começo da década de 1960, esses peixes eram comuns nesse rio.

Nos últimos 20-30 anos, foi a pesca no Pantanal que declinou muito devido ao desmatamento, uso intenso agrícola das cabeceiras do Pantanal, pesca excessiva e construção de hidrelétricas. O Pantanal já não é mais a Meca da pesca como era considerado há 15-20 anos .

Já na bacia do rio Paraná o pior já aconteceu, os peixes nativos de maior interesse já praticamente desapareceram. As espécies que agora predominam nas represas da bacia do rio Paraná foram introduzidas justamente porque se adaptavam aos novos ambientes, como o tucunaré, a pescada e a tilápia.

Epoch Times: Poderia explicar qual processo faz os peixes desaparecerem?

Flávio Lima: Poucas espécies de peixes nativos sobrevivem nos trechos de rio represados, já que um rio transformado em reservatório já não funciona mais, na prática, como um rio.

Um rio naturalmente invade as áreas de planícies inundáveis onde estão as lagoas marginais, o que propicia um ambiente aquático não só para os peixes adultos, mas para os peixes jovens que estão crescendo. Isso é o chamado “pulso de inundação”, em que as planícies de inundação próximas aos grandes rios são invadidas pelas águas no período de cheias. Hidrelétricas, uma vez em operação, além de inundarem permanentemente trechos grandes de rios, regulam a vazão do rio abaixo. As hidrelétricas com grandes reservatórios acumulam as águas dos rios, que por isso deixam de ter sua flutuação natural de nível de águas, o “pulso de inundação”.

Quando as hidrelétricas liberam a água para produzir energia, o fazem de acordo com a demanda energética, eliminando a sazonalidade natural do rio, que tende a correr com um nível de águas aproximadamente uniforme ao longo do ano, prejudicando muito as populações dos peixes migradores que dependem do “pulso de inundação”.

Epoch Times: Que outras mudanças ocorrem nos rios represados?

Flávio Lima: Grandes hidrelétricas retêm o sedimento dos rios, que decantam e se acumulam no fundo dos reservatórios por conta da diminuição da correnteza do rio. Isso interfere com os processos biológicos e geomorfológicos rio abaixo, já que esses sedimentos são necessários tanto para a constante reconstrução das planícies fluviais, como por carregarem nutrientes orgânicos e inorgânicos necessários para a cadeia alimentar. Com a perda de sedimentos, rios abaixo de grandes reservatórios tendem a intensificar processos erosivos, como foi observado muito recentemente no rio Madeira em Porto Velho, após a construção da hidrelétrica de Santo Antônio.

Outro problema é a produção de gases causadores do aquecimento global, principalmente o gás metano, pela decomposição da floresta inundada, um problema particularmente sério nas hidrelétricas construídas na bacia amazônica, como foi o caso das hidrelétricas de Balbina e Tucuruí e será o caso também das hidrelétricas de Belo Monte e aquelas a serem construídas na bacia do rio Tapajós.

Epoch Times: Como está o ritmo de construção das hidrelétricas na Amazônia?

Flávio Lima: O ritmo de construção de hidrelétricas na bacia amazônica está sendo rápido demais, a um ponto que os biólogos, e especialmente os ictiólogos (especialistas em peixes) não estão sendo capazes de dimensionar a magnitude dos impactos que estão e serão causados por elas.

Hidrelétricas estão sendo planejadas ou construídas em todos os trechos com corredeiras ou cachoeiras da Amazônia brasileira. Todo um tipo de ambiente aquático irá desaparecer, e com ele, toda a fauna de peixes especializados nesse tipo de ambiente e os demais organismos (insetos, plantas, etc) que vivem nesse tipo de ambiente. Muitas espécies de peixes vão desaparecer.

Epoch Times: Pode dar alguns exemplos das hidrelétricas na Amazônia?

Flávio Lima: A grande hidrelétrica de Tucuruí, fechada durante o regime militar, em 1984, é a maior hidrelétrica inteiramente em território nacional, e inundou uma enorme área (quase 3.000 quilômetros quadrados). Ela inundou grandes trechos de corredeiras do baixo rio Tocantins. Algumas espécies de peixes de corredeiras que viviam nesse trecho foram capturadas durante a construção da hidrelétrica, mas não mais após. Hoje são consideradas ameaçadas de extinção, embora efetivamente saibamos muito pouco sobre elas, além do fato de que seu habitat natural foi irreversivelmente modificado pela construção da hidrelétrica.

Perdemos também uma área de enorme beleza cênica natural, que poucos brasileiros, além dos indígenas que habitaram o baixo rio Tocantins, chegaram a conhecer. E o terrível é que o mesmo está sendo feito em todos os rios amazônicos com corredeiras/cachoeiras.

No Rio Xingu – Belo Monte – há uma espécie de cascudo, o cascudo-zebra (Hypancistrus zebra) – muito bonito, branco com listras pretas, muito apreciado no comércio aquarista internacional, especialmente na Alemanha, Japão e Estados Unidos. Esse peixe só existe na grande volta do Xingu, um trecho de rio de 100 quilômetros, situado acima da cidade de Altamira. Ele é endêmico – ou seja, só existe nesse trecho de rio, em mais nenhum lugar. A hidrelétrica de Belo Monte irá desviar a maior parte da água que hoje corre através da Grande Volta, em um canal que está sendo construído.
Isso acarretará, em consequência, uma grande redução na vazão da Grande Volta do rio Xingu. Não irá secar completamente, mas a quantidade de água que irá passar no trecho corresponderá ao que hoje passa no período mais seco do ano. Isso certamente acarretará um grande dano à fauna aquática desse trecho do rio. Existem áreas indígenas nesse trecho, e como essas comunidades dependem da pesca para sua sobrevivência, serão muito afetadas pela construção de Belo Monte.

Os engenheiros dizem que a quantidade de rocha e pedra para fazer esse imenso canal é maior do que para construir o canal do Panamá! É uma imensa interferência no rio Xingu.

Epoch Times: Como equilibrar a questão da demanda energética e a conservação?

Flávio Lima: Sim, é claro, existe a demanda energética – que está crescendo etc, mas temos que começar a pensar, como cidadãos, se vale a pena esse tipo de desenvolvimento. A questão do desenvolvimento, como é pensado e colocado em prática, é um modelo que não se sustenta. Os recursos do nosso planeta são limitados, mas isso não é considerado pelos planejadores, ou seja, políticos, economistas, engenheiros, etc. Para eles, apenas o crescimento interessa. Não há perspectiva de mudança de paradigma econômico. Então, é inevitável – as últimas grandes áreas ainda intocadas do planeta terão de ser incorporadas de forma mais intensa na economia brasileira e mundial. Isso se traduz de uma forma simples: hidrelétricas e mineração por toda a Amazônia, e aliada, é claro, à derrubada da floresta para agricultura e pecuária.

Há grandes interesses na extração de recursos minerais em grande escala nas bacias dos rios Tapajós e Xingu. Em parte, as hidrelétricas planejadas para esses rios serão construídas para atender essa demanda energética prevista. Principalmente a extração e o beneficiamento da bauxita. Cerca de 80% da energia produzida pela hidrelétrica de Tucuruí é para atender o consumo de energia das indústrias que beneficiam bauxita em alumínio. Há projetos de extração de bauxita próximos à Belo Monte, na região de Juruti, pela ALCOA (Aluminum Company of America), e que certamente usarão a energia de Belo Monte em suas instalações. Embora seja o discurso oficial que a maior parte da energia será para atender a demanda energética do resto do Brasil.

Epoch Times: Existem alternativas às hidrelétricas?

Flávio Lima: Há alternativas de recapacitação de usinas hidrelétricas já instaladas, das redes de transmissão (muita energia é perdida e a modernização da rede causaria uma diminuição substancial nessas perdas), uma enorme capacidade de geração de energia elétrica pela biomassa da cana de açúcar, além de investimentos em energias alternativas não poluentes, como a energia solar. Mas isso não é considerado pelos planejadores, que, ao invés disso, preferem construir enormes hidrelétricas na bacia amazônica, com custo ambiental e social enormes.

Pessoalmente, eu não acredito que exista outra solução senão a substituição de nosso paradigma econômico, e, de fato, civilizatório. Se continuarmos com essa mentalidade de usufruto dos bens naturais até seu esgotamento, só conseguiremos duas coisas: um, a extinção de boa parte da biodiversidade do planeta. E, claro, a própria inviabilização da civilização humana. Então, é hipocrisia falar de conservação da biodiversidade se nos mantivermos nesse modelo. Mas isso, é claro, é uma questão mundial, não apenas do Brasil. É que o Brasil poderia tentar ter alguma liderança no processo de mudança de paradigma. Mas não há qualquer vontade de nossos dirigentes, e, verdade seja dita, da grande maioria da nossa sociedade, em trilhar esse novo caminho.

Epoch Times: Quais as perspectivas que você vê com base neste cenário?

Flávio Lima: Continuaremos nesse processo de engolir as áreas selvagens, sabe Deus até quando. Não sei o que será da Amazônia. Há 40-50 anos atrás achávamos que era grande demais, que iria levar muito tempo para ser modificada pela ação humana. Mas desde os anos 70, esse processo se acelerou muito.

Será que devemos trilhar esse caminho em troca do benefício econômico de curto prazo? É uma pergunta que a humanidade deveria se fazer. Estamos queimando nosso capital ambiental. As futuras gerações irão pagar um preço muito caro pela nossa inconseqüência.

É um caminho equivocado. O Brasil se orgulha de ser o país mais ‘biodiverso’ do mundo, e isso está até em nosso hino nacional (“nossas matas têm mais vida”) e no verde de nossa bandeira. Esse avanço desenfreado sobre a Amazônia é um ataque a nossa própria identidade como povo. Vamos nos orgulhar do quê, daqui a algumas décadas? De termos sido o país que mais causou extinção de espécies no planeta? É muito triste, mas parece que é esse o rumo que estamos tomando. Então tem de haver uma tomada de consciência, por parte da sociedade, dessas questões. Entender que a perda de biodiversidade é irreversível e pode ser o sintoma da deterioração dos recursos naturais e da nossa própria capacidade de nos mantermos como uma sociedade funcional. Antes que seja tarde.

Fonte: Epoch Times

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